"Partir" é sempre (muito!) doloroso para quem fica. Deste lado não sabemos o significado para quem partiu, mas sabemos que o antes da partida é, maioritariamente, muito difícil. Nestes dias em que a proximidade de alguém escapou-me(nos), o texto seguinte, com a força da escrita sentida de Paulo Varela Gomes, vai atalhando...
Tenho um cancro de
grau IV. De cada vez que abro o teclado do computador na intenção de escrever,
ocorre-me a frase, já mil vezes repetida, “Quando estiverem a ler estas linhas,
é provável que o autor já não esteja vivo”.
São incontáveis os
artigos, livros, documentários e filmes sobre pessoas que morrem de cancro.
Nunca vi nenhum porque não aguento o stress mas ouvi dizer que alguns são
eficientes e fazem os espectadores chorar muito. Não vou escrever aqui um
artigo desse género, primeiro, porque não sou capaz, e em segundo lugar porque
a história da minha doença e daquilo que tenho feito para lidar com ela tem
algumas características muito peculiares que podem interessar a todo o género
de pessoas que se preocupam com a vida e a morte e que pensaram com seriedade
no tema deste número da Granta: “Falhar melhor”.
Tudo começou quando
acordei uma manhã com um inchaço do tamanho de uma amêndoa no lado esquerdo do
pescoço. Iludido por uma espécie de incredulidade optimista, pensei que se
tratava do resultado de uma infecção nos dentes ou na garganta. Desenganou-me
um médico especialista dessas áreas com quem fui falar alguns dias depois: “O
senhor tem uma massa na garganta. É melhor ir ver isso rapidamente.” Estava
muito grave e sossegado, ele. Percebi depois que nunca lhe tinha passado pela
cabeça que alguém não soubesse o que quer dizer “massa” em termos orgânicos.
Esta foi a única consulta médica a que a Patrícia, minha mulher e minha
“curadoura”, não me acompanhou. Estava a ajudar a Rita a podar as videiras da
Vinha Comprida. Quando lhe telefonei a transmitir a seca mensagem do médico,
percebeu tudo e diz-me que ficou imenso tempo a olhar lá para o longe, para o
pinhal sobre a várzea, com as lágrimas a correr-lhe pela cara.
Quarenta e oito horas
depois fiz a obrigatória TAC cervical. Despi-me sem preocupações, coloquei
aquela bata ridícula dos hospitais que faz qualquer pessoa parecer que sofre
ininterruptamente dos intestinos, deitei-me na máquina. No fundo, esperava boas
notícias: não tarda, iriam informar-me de que se tratava de uma chatice menor.
Estivemos depois hora e meia debaixo da luz verde escura, crepuscular, da sala
de espera. Quando o radiologista veio falar connosco, acabou nesse preciso
instante a vida que levávamos juntos há mais de duas décadas. O radiologista
tinha a expressão macambúzia de quem apresenta os pêsames a uma família
enlutada: cancro na otofaringe com tumor na cadeia linfática cervical posterior
e metástases no pulmão. Não operável. Tratamentos em doses muito altas de
quimio e radioterapia para, daí a dois a quatro meses, deixar de poder comer ou
respirar.
Decidimos que nunca me
submeteria aos tratamentos da medicina oncológica, às suas armas: as clássicas
(cirurgia), as químicas (drogas) e as nucleares (radioterapia). Estas armas
destroem as defesas próprias do organismo e aceleram frequentemente a sua
degradação. Já vi suficientes doentes de cancro entregues nas mãos da oncologia
para tremer de horror ao pensar que poderia suceder-me o mesmo.
Quando voltámos para
casa, não houve uma lágrima, um gesto de desespero, um queixume. Falámos muito
pouco. As estradas por onde passávamos tantas vezes pareciam agora ter uma
realidade inverosímil, como se fossem pinturas de paisagem antiga. Fazia calor
e a luz era branca.
Durou vários dias
seguidos, este silêncio emocional. As palavras que trocámos em casa foram
reduzidas ao mínimo. Uma consulta com um médico do IPO confirmou tudo o que
estava no relatório do radiologista. Mais tarde, algumas instituições com nomes
que tilintam como lingotes de ouro vieram dizer-nos o mesmo: não havia nada que
valesse a pena fazer.
Essas opiniões não nos
importaram, porém. Numa estranha frieza, só quisemos saber o que faríamos para
acabar com a minha vida quando essa altura chegasse. A Patrícia jurou que não
me impediria de morrer, e até me ajudaria se fosse necessário. Como disse
Plotia ao poeta em A Morte de Virgílio de Hermann Broch: “A morte fecha-se a
quem está só, o conhecimento da morte apenas se desvenda à união de dois seres.”
Sucede que estes
acontecimentos já me parecem um pouco perdidos no nevoeiro do tempo. Passaram
mais de mil dias desde a tarde abafada de 23 de Maio de 2012, quando fiz a TAC,
até à nebulosa e fresca tarde de Primavera em que estou aqui a escrever isto.
Dois anos e onze meses.
Não sei se nesta
evolução, que não tem cessado de nos surpreender e a quem nos conhece, podemos
adivinhar a lenta condensação de um milagre. Sei que há muita gente a rezar por
mim e é com alegria que agradeço a todos.
Mas sei também que
tenho recorrido a muitas medidas práticas para evitar a sorte ditada pelos
oncologistas.
A primeira foi
fazer-me acompanhar, desde algumas semanas depois da TAC, por um médico
homeopático (os médicos encartados não acham graça nenhuma a que se chame médico
a um homeopata, mas tenham santa paciência). Sob sua orientação comecei por
mudar radicalmente de regime alimentar. Em vez de comer produtos tóxicos como
faz a maior parte das pessoas, passei a alimentar-se com produtos que ajudam o
meu sistema imunitário e alguns que combatem o cancro activamente. Além disso,
o médico foi prescrevendo suplementos alimentares e medicamentos homeopáticos.
Devo à homeopatia a
qualidade dos mais de mil dias de vida que levo de vantagem sobre os médicos
oncologistas. Duas ou três semanas depois de começar a terapia já começava a
duvidar de alguma vez ter tido cancro. Imaginem: um canceroso em estado grave,
que pouco tempo antes estava arrasado de cansaço e pessimismo, foi à praia!
Confesso que tive medo de entrar na água, eu que vivi junto ao mar e mergulhei
nas suas ondas vezes incontáveis. Só no segundo dia consegui decidir-me, e foi
tão grande a felicidade experimentada no corpo que percebi que a Idade do Gelo
em que tínhamos vivido desde o diagnóstico tinha dado lugar a uma Primavera,
incerta e frágil, é verdade, cheia de dias de nuvens, mas tempo de viver e não
de morrer.
As semanas correram e
fomos passear a Toledo, a Burgos, a Viseu. Participei em conferências, orientei
alunos, fiz todos os dias companhia à minha mulher e aos nossos seis cães,
andei com a minha neta aos saltos sobre os charcos de água da chuva. As minhas
análises foram durante muito tempo boas, e o meu aspecto muito diferente da
maioria dos desgraçados que frequenta os campos de morte da oncologia. Além
disso, como os leitores e leitoras saberão, escrevi e publiquei três romances,
uma colectânea de colunas escritas para jornais, e finalizei mais um romance e
um livro de contos.
Todavia, não houve um
único dia em que não tenha pensado na morte. Nem um. Ao princípio não receei
mas também não compreendi essa Senhora de Negro e, portanto, ofereci-lhe de
bandeja as inúmeras oportunidades que, demoníaca, busca dentro de nós para nos
fazer a vida num inferno ou para nos levar. É verdade que a vontade de viver teve
desde sempre mais poder sobre mim do que a desistência perante a morte ou a ida
ao seu encontro – já não estaria aqui se assim não fora. Mas vida e morte estão
por vezes demasiado próximas e o conflito entre elas que tem lugar no meu
espírito é muito antigo e muito complexo. Sou acompanhado por psicanalistas há
muito tempo. Aquele com quem trabalho desde há alguns anos, e que é uma das
peças-chave do puzzle da minha não-morte, recebeu como uma pancada a notícia do
meu diagnóstico e, depois de uma breve conversa entrecortada de angústia e
silêncio, lembro-me de lhe ter dito com um ar quase triunfante: “Nem sempre se
pode ganhar, doutor…”
Quem é que estava a
falar assim pela minha boca? Quem é que experimentava em mim essa estranha
alegria raivosa que emergira quando soube que tinha um cancro e que este era
incurável? Que força psíquica queria que eu morresse, que as pessoas tivessem
misericórdia de mim, se recordassem, me admirassem? Que parte de mim, velha e
zangada, se aproveitava assim deste meu narcisismo para me arrastar para a
morte?
A vida é muito menos
cheia de prosápia do que a morte. É uma espécie de maré pacífica, um grande e
largo rio. Na vida é sempre manhã e está um tempo esplêndido. Ao contrário da
morte, o amor, que é o outro nome da vida, não me deixa morrer às primeiras:
obriga-me a pensar nas pessoas, nos animais e nas plantas de quem gosto e que
vou abandonar. Quando a vida manda mais em mim do que a morte, amo os que me
amam, e cresce de repente no meu coração a maré da vida. Cada lágrima que me
escorre por vezes pela cara ao adormecer, cada aperto de angústia na garganta
que sinto quando acordo de manhã e me lembro de que tenho cancro, cada assomo
de tristeza que me obriga a sentar-me por vezes à beira do caminho quando vou
passear com os cães e interrompe a oração ou a conversa com o céu que me
embalava o espírito, cada um destes sinais provém do falhanço momentâneo do
amor dos outros em amparar-me, e sobretudo do meu em permitir-lhes que me
acompanhem.
Quando, pelo
contrário, decorre um dia em que consigo escrever e gosto daquilo que escrevo,
em que me curvo sobre os canteiros para cortar ervas daninhas, em que admiro
amorosamente a energia da Patrícia sentada ao computador ou a trazer lenha para
casa, quando isto sucede, o meu tempo já não é o Tempo Comum mas antes um longo
domingo de Páscoa: sinto a presença amorosa de todos os que precisam de mim e
d’Aquele de quem eu preciso.
O médico homeopata
nunca me prometeu um milagre, e a minha saúde começou a piorar em Janeiro de
2014, cerca de um ano e meio depois do diagnóstico oncológico. Pouca coisa, ao
princípio: algumas dores no pescoço, na cabeça e na garganta, mais cansaço,
problemas intestinais. Pouco a pouco, desapareceram ou tornaram-se-me
impossíveis, um por um, todos os prazeres físicos de cujo timbre e tom já quase
me esqueci: o sexo, beber um copo de vinho tinto antes do jantar, fazer uma
viagem com mais de duas ou três horas, o gosto da comida sólida a percorrer-me
o interior da garganta com os seus variados sabores e texturas, uma corrida com
os miúdos ou os cães.
Houve semanas piores,
outras melhores, mas o tumor do meu pescoço foi crescendo, rebentou como um
pequeno vulcão de pus, e ficou pouco a pouco com um aspecto tão abominável que
deixei de aguentar ser eu a mudar o penso todas as manhãs. O terrível panorama
estragava-me o dia e a melancólica e repugnante tarefa de cuidar do tumor ficou
adstrita à Patrícia, que sabe fazer tudo e não tem nojo de nada. Mais tarde,
alternando com ela, começaram a vir regularmente a minha casa as enfermeiras
dos serviços continuados de saúde.
E, de repente, ia
morrendo: uma grande hemorragia despertou-me a meio de uma noite de Julho de
2014, encharcado no sangue que brotava de uma veia que o tumor do meu pescoço
pôs a descoberto e enfraqueceu. Desmaiei imediatamente e a Patrícia, não
conseguindo ao princípio acordar-me, pensou que tudo estava acabado.
Ganhei depois, com
lentidão e a custo, uma relativa saúde. Passei dias inteiros deitado. Depois,
devagarinho, melhorei. Uma nova hemorragia, em Dezembro, embora não tenha
atingido a violência da anterior, obrigou-me a considerar uma transfusão de
sangue que fiz num hospital que estava, como quase todos nessa época,
mergulhado num tal caos que passei um dia simultaneamente divertido e ofendido
a observar a desordem que grassava à minha volta.
As duas perdas de
sangue fizeram pender a balança para o lado da minha morte interior: regressei
à melancolia com que me sentava à sua cabeceira conversando com ela nas
duríssimas semanas do Verão de 2012 que se seguiram ao veredicto do cancro.
Como é que vou morrer? Exactamente como?, perguntava-lhe.
Não me referia à
chamada morte natural, que nunca me tinha ocorrido desde o primeiro dia da
doença. Falava da morte infligida por mim próprio.
Entretanto, porém, o
cristianismo, que estava quase esquecido desde o meu baptismo, irrompeu pela
minha vida através da palavra de um Padre que é outra peça-chave do puzzle, mas
desta vez, e ao invés do psicanalista, do puzzle do meu encontro feliz com a
morte.
O suicídio é uma ofensa
frontal à vontade de Deus que quer que a morte de cada cristão seja a sua
disponibilidade para de se entregar à Cruz no momento em que Cristo quiser e da
maneira que Ele decidir. Mas eu e a Patrícia tínhamos jurado que eu morrerei
aqui, em minha casa, e que nada me fará embarcar no carnaval de luzes da
ambulância para ir morrer a um hospital. Esse juramento mantém-se.
Tomámos esta decisão
mal tínhamos saído do parque de estacionamento da clínica onde fiz a TAC e ouvi
o diagnóstico. No meu espírito doente, a morte celebrava jubilosamente a
vitória desse momento e era-me tão impossível controlar ou combater este
sentimento como invocar a luz da esperança, encolhida num canto de mim como um
miúdo paralisado de terror. Enquanto regressávamos a casa, eu pensava na
dificuldade e nos riscos envolvidos no modo como morreu o meu irmão, pensava no
salto de uma ponte, pensava na agonia do veneno, na ignorância sobre
medicamentos letais, mas sobretudo no facto de que todos estes caminhos da
morte ainda concedem ao suicida o tempo suficiente para se arrepender,
precisamente aquilo que eu não queria na altura, mergulhado num tumulto mental
que julgava mais voluntário e corajoso do que de facto era.
Experimentei por vezes
os movimentos da dramatização da minha morte, uma espécie de novela sem
invenção e sem vida cujo maior óbice era o de saber se, na altura definitiva,
teria a certeza absoluta de não haver outra solução. Conseguiria deitar fora
como se fossem trocos sem valor os restos de vida que continuam a cintilar dentro
de mim? E se me enganasse? Se não fossem meros desperdícios? Se valessem mais
do que a escuridão silenciosa do túmulo onde vou apodrecer?
Aquando da segunda
hemorragia, cheguei-me muito próximo de encontrar uma resposta sem alternativa
a estas questões. Depois de fechar os cães e de me despedir brevemente da
Patrícia, sufocada de pavor e lágrimas, ajoelhada no chão sem conseguir olhar
para mim, saí de casa transportando a arma e uma cadeira de plástico onde me
sentar com a coronha da arma apoiada no solo. Quase não tinha forças e
tremiam-me as pernas. A minha camisa estava empapada em sangue e, tendo passado
a mão pela cara e os óculos, vi as árvores, os arbustos, a casa das ferramentas
e do tractor, a encosta, a vinha, através de um nevoeiro vermelho. A decisão
com que, apesar da fraqueza física, andei sem hesitar algumas dezenas de
passos, surpreendeu-me a mim mesmo. Pronto, ia morrer. Aspirei o cheiro
intenso, quase ridente, de uma hortelã-pimenta que nascera ao pé do pinheiro
grande sem que, até então, alguém tivesse dado por ela. Coloquei a cadeira
junto a uns troncos cortados, sentei-me e, já com os canos da arma na boca, o
dedo aflorou o gatilho. Senti o metal como uma coisa sem qualidade, cálida,
mortiça, dócil. Tudo me pareceu vagamente ridículo, o meu gesto, os objectos de
que me rodeara. Veio até mim mais uma vez o cheiro da hortelã. Ergui os olhos
que tinha fixados na guarda do gatilho e vi um pinhal que o sol, através de uma
abertura nas nuvens, isolava, dourado, do verde-escuro da encosta. Ocorreu-me
de repente uma vaga de alegria inexplicável, como se fosse um sinal da presença
de Deus à semelhança daqueles que os textos sagrados referem por vezes. Cheguei
à mais simples conclusão do mundo: estava vivo e, enquanto assim estivesse, não
estava morto. Fiquei verdadeiramente contente, a vida a fervilhar em todas as
veias, mesmo as estragadas. Pousei a arma no chão e regressei a casa. Não olhei
para trás, para a cadeira branca e a arma, que ficaram ali completamente
indiferentes à minha sorte. Ao abrir a porta, a Patrícia, sem conseguir dominar
a torrente de lágrimas que lhe corria pelo rosto, caiu-me nos braços. Ficámos
muito tempo agarrados um ao outro, quase imóveis, como se fôssemos o tronco de
uma grande árvore.
Não há muito mais a
contar. A saúde vai piorando pé ante pé.
Deixei para trás a
ideia de suicídio por uma razão muito simples que levou demasiado tempo a
descobrir. Ei-la nas palavras que Mateus atribui a Cristo (Mt 10, 39), palavras
que iluminaram como um relâmpago – e finalmente resolveram no meu coração – a
maneira hesitante como lidei com o sofrimento nestes mais de mil dias:
“Aquele que conservar
a vida para si, há-de perdê-la; aquele que perder a sua vida por causa de mim,
há-de salvá-la”.
S. Domingos, Podentes,
10 de Abril de 2015
Paulo Varela Gomes
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